Simplificando a Saúde Baseada em Valor
Envelhecimento da população. Aumento de doenças crônicas.
Dificuldade para coordenar cuidado prestado.
Necessidade de inovações tecnológicas.
Custos com saúde crescendo mais rapidamente do que o PIB.
Pagamento por volume de procedimentos.
Falta de controle da qualidade assistencial.
Essa descrição da situação em que se encontra o sistema de saúde é repetida em todo fórum que trata do assunto, e, portanto, é conhecida por todos. A conclusão é uma só: a incontestável insustentabilidade do sistema.
As normativas regulatórias da ANS levaram as operadoras de planos de saúde a planejar a implantação de novos modelos de remuneração, alternativos ao Fee-For-Service e baseados em valor. Desta forma, o processo começou pelo final. A Saúde Baseada em Valor (SBV) ou Value Based Health Care (VBHC) é muito mais ampla e exige uma preparação meticulosa antes que cheguemos à forma de pagamento. Como definido no relatório do Fórum Econômico Mundial, divulgado em janeiro deste ano, sua implantação não pode ser incremental, mas disruptiva, na forma como a prestação de cuidados em saúde deve ser organizada, medida e remunerada. Felizmente, os envolvidos começaram a falar em saúde e não apenas remuneração baseada em valor.
Comecemos do princípio. Michael Porter e Elizabeth Teisberg, em seu livro “Repensando a Saúde”, escrevem: "Valor do paciente é definido como resultados relevantes para o paciente, divididos pelos custos por paciente ao longo de todo o ciclo de atendimento para alcançar estes resultados. VBHC se concentra em maximizar o valor do cuidado para os pacientes e reduzir os custos dos cuidados de saúde." É importante ressaltar que ao falarmos de resultados, sempre estaremos nos referindo àqueles que interessam ao paciente e que tragam benefícios reais a ele, ou seja, sobrevida, tempo de recuperação adequado, qualidade de vida (independência, ausência de dor, possibilidade de locomoção) e bem-estar emocional, de forma geral. A entrega de valor foca específica e diretamente no paciente, gerando uma competição saudável e de soma positiva entre serviços prestadores de cuidados em saúde, que traz benefícios a todos os envolvidos.
Para entendermos o papel da SBV na sustentabilidade do sistema de saúde, precisamos ter conhecimento das características principais da competição gerada por esta forma de encarar a assistência, a saber:
1. Foco na entrega de valor e não na simples redução de custos. A diminuição dos gastos é uma consequência gerada pela eliminação de desperdício e serviços desnecessários, com eficiência real, coordenação e integração do cuidado, avaliação de riscos e prevenção de doenças, sem transferência de custos, restrição de tratamento ou diminuição de qualidade. Há que se atingir equilíbrio entre qualidade e custo necessário para gerá-la, de forma que não haja prejuízo na assistência prestada ou custo tão elevado que a torne insustentável.
2. Foco na avaliação de resultados. O valor entregue é medido pelo resultado que chega ao paciente e não por conformidade de processos. Assim, há estímulo a revisão constante de protocolos e normas e inovação em todos os níveis (dispositivos, medicamentos, estrutura organizacional, tecnologia, equipamentos, instalações físicas, métodos, processos). Hoje a inovação é desencorajada pela falta de prestação de contas, práticas de pagamento que penalizam melhores métodos e foco na economia a curto prazo. Na SBV a inovação não é, necessariamente, mais cara, porque desenvolvemos eficiência concomitantemente.
3. Centralização na condição de saúde, ao longo de todo o ciclo de atendimento. Porter e Teisberg definem condição de saúde como: “Conjunto de circunstâncias na saúde de um paciente que se beneficia de cuidado dedicado e coordenado, que abrange males, lesões, doenças e circunstâncias naturais, como gravidez, englobando monitoramento, diagnóstico, intervenções, reabilitação e gerenciamento a longo prazo.” A organização do cuidado baseada na condição de saúde melhora seu gerenciamento e coordenação, proporcionando garantia de adesão, identificação precoce de complicações e definição de riscos. A avaliação ao longo de todo o ciclo de atendimento gera compartilhamento de responsabilidade entre os participantes envolvidos em diagnóstico, tratamento e reabilitação. Todos se tornam igualmente responsáveis pela entrega de valor medida ao final de todo o processo e deixam de se preocupar apenas com sua participação pontual. Da mesma forma, não há interesse em transferência de custo, uma vez que a falha em um dos pontos do ciclo afetará a todos igualmente.
4. Estímulo a um ciclo virtuoso na saúde. A busca por qualidade e eficiência faz com que alguns profissionais/prestadores se destaquem. Naturalmente, haverá direcionamento de beneficiários para esses serviços, gerando aumento de volume e experiência. Desenvolverão, assim, equipes dedicadas e capacitadas, rotinas aperfeiçoadas e eficazes, melhor aproveitamento de recursos humanos e materiais, maior poder de negociação e gestão mais eficiente, decorrente do aprendizado gerado pela repetição da prestação do cuidado. Gerarão valor, que proporcionará reconhecimento da boa entrega e o aumento de volume de atendimento, realimentando o ciclo. A satisfação com padrões mínimos não tem mais lugar. Devemos buscar excelência em todos os níveis da assistência.
5. Ampliação da área de comparação com ampla divulgação de resultados. Para que haja comparação das entregas, há que se estabelecer parâmetros claros e objetivos. A SBV preconiza que estes parâmetros não se restrinjam á áreas pequenas, mas se expandam a dados nacionais e até internacionais. Para tanto, a divulgação dos resultados deve ser ampla e transparente, permitindo comparação por pacientes, profissionais e demais envolvidos no encaminhamento aos serviços de saúde.
A assistência à saúde baseada em valor exige, portanto, robusta e confiável coleta de dados, com definição de métricas comparáveis e ampla divulgação de resultados, para que haja competição saudável pela melhor entrega. De forma simples, as etapas envolvidas são definição de métricas, coleta de dados, divulgação de resultados, reconhecimento da entrega de valor e, agora sim, remuneração diferenciada.
Em relação às métricas, segurança do paciente e qualificação de rede se mostram efetivas neste papel e, voltando à ANS, são valorizadas nas normativas que avaliam operadoras de saúde. Oferta de programas de incentivo ou inclusão de cláusulas contratuais são instrumentos que geram bons resultados. É importante lembrar, entretanto, que as métricas definidas devem ser capazes de demonstrar o valor gerado para o paciente.
Quanto à remuneração diferenciada, há uma gama grande de possibilidades, que exigiria outro artigo inteiro. Uma maneira de começar é bonificando profissionais ou serviços que cumprem as metas estabelecidas, oferecendo cuidado mais qualificado. Observamos que é difícil punir as piores entregas. Esta implantação é muito mais complicada. Mas é muito bem aceita a bonificação para a entrega de valor. Este movimento incentiva a busca por qualidade, a implantação de boas práticas.
Agora é possível entender que o conceito geral da SBV não é complexo: avaliar a assistência e recompensar as melhores entregas, incentivando crescimento destes serviços ou profissionais. Complexa é sua implantação. Deve haver mudança de pensamento, mudança na forma de encarar a prestação de serviço. Não há resultado financeiro a curto prazo como atrativo. Ao contrário, no início pode ser necessário investimento para realizar as bonificações. A economia de custos virá a médio e longo prazos, com adesão das instituições e competição por entrega de valor estabelecida. Portanto, a alta liderança de operadoras ou serviços prestadores de cuidado em saúde precisa apoiar a ideia para que esta nova cultura se estabeleça. Há ajustes sistêmicos e adequação tecnológica necessários à coleta de dados e avaliação de indicadores. Equipes dedicadas e capacitadas devem ser formadas. Troca de informações são fundamentais para que o sistema cresça.
Não há, entretanto, dúvida quanto à necessidade e aos benefícios da implantação da Saúde Baseada em Valor. O sistema de saúde só se manterá com mudanças drásticas na forma de pagamento e a SBV dá a base para esta estruturação.
Apesar de tudo, o horizonte não é totalmente desfavorável. O tema aparece cada vez mais em fóruns diversos. A teoria, entretanto, se esgotou. Não há mais novidades a serem apresentadas. O movimento agora deve ser de conscientização de mais instituições, para que as iniciativas pontuais identificadas se disseminem. O caminho é começar pequeno, planejando grande. Começar com um prestador ou com um procedimento específico. Com poucos indicadores, essenciais, que possam ser monitorados e gerenciados, levando a ações concretas. A expansão virá conforme as iniciativas amadureçam e se incorporem às rotinas. O importante é começar. Não temos mais tempo. A sustentabilidade do sistema de saúde está em nossas mãos.
Dra. Claúdia Cafalli (CRM 57.339)